Já fazia 4 anos que eu não me apaixonava

Como uma linda história de amor pode se transformar em pesadelo.

Estava no auge do sossego pós pandemia: apartamento novo, corpo malhado de academia, rotina de trabalho, amigos, família. Tudo tão certinho e tranquilo que os olhos e o cabelo brilhavam.

Meu bairro tem moradores que se conhecem há 20 anos. Pessoas que estudaram juntas e cresceram e seguem em contato como se fosse uma grande família. Lindo de ver!

Numa noite de brisa gostosa de maio, num churrasco de calçada, me apresentaram um desses amigos de infância que pouco vinha por aqui. Homem de sorriso largo na cara e jeitão de gurizão do mato. Meu tipo! Meia hora de conversa e descobrimos um mundo de compatibilidades e assim seguimos por alguns meses de mensagens e piadas e fotos e fofocas via WhatsApp. Fomos ao primeiro churrasco, ao primeiro futebol, ao primeiro bar, ao primeiro show, a primeira Copa do Mundo, o primeiro Natal, a primeira praia e já éramos o casal super. O mais improvável dos casais e o mais bonito casal de amigos. Sim, éramos muito amigos. Já não ficávamos longe um do outro mais que 2 dias.

Ele morava num sitio há uns 30km da minha casa. Por causa do meu aniversário, inventamos uma obra e, para ajudar com a alimentação e coordenação das compras da obra, ele me pediu para ficar com ele no sítio. Eram apenas 30 dias, era verão… ok. Nesses 30 dias acordávamos as 7:30 da manhã e íamos dormir meia noite. Eu fazia café, almoço e janta para duas casas: a dos pedreiros e a nossa. Eu limpava, lavava roupa, cozinhava, ia ao supermercado, fazia as compras da obra e ajudava em qualquer tarefa.

Nesse período ele achou que devíamos emagrecer e começamos uma dieta. O trabalho e as longas caminhadas pelo sítio eram meu exercício diário. No início eu voltava para minha casa de terça à quinta -feira, mas com o passar do tempo e para não deixar o sítio sem ninguém, comecei a voltar às terças e retornar ao sítio na quarta. Às vezes ia e voltava no mesmo dia! Passei a falar cada vez menos com os meus amigos e também com minhas filhas. Aos domingos já não ia na minha mãe. As coisas aconteciam sem eu me dar conta. Mas era tudo tão lindo! Tudo que eu gostava “surgia” no sítio: uma academia inteira para eu não precisar ir mais na minha, uma cozinha nova para eu cozinhar como na minha casa, uma horta, um jardim… Fiz meu lar na casa dele sem me dar conta!

Passei a viver no sítio e a conviver com as pessoas da vida dele. Nas nossas noites de conversa ele sempre dizia que agora eu era do interior, que agora eu era do campo. E eu achava tudo tão lindo. Os dias passavam rápido, cheio de trabalho e planos. As noites eram de carinho, conversas e fofocas. Ele sempre falava de como tinha me salvado me tirando da turma do centro ou das amigas invejosas ou treteiras. Todos os dias ele deixava claro como estava me fazendo bem e me proporcionando uma vida saudável e de pura paz e amor.

Cada dia eu emagrecia mais, me ocupava mais, trabalhava mais, e me afastava mais da minha casa, dos amigos, da família, do trabalho. Sempre, em tom de brincadeira, ele dizia que ia desligar a internet para eu não ficar de mimimi com as amigas na madrugada. Sempre, em tom de brincadeira, ele dizia que eu precisava emagrecer pois estava doente. Sempre, em tom de brincadeira, ele dizia que eu ficava muito tempo em chamadas de vídeo com minhas filhas. Sempre, em tom de brincadeira, ele me corrigia em todas as tarefas. Sempre, em tom de brincadeira, ele dizia que eu era desastrada e desatenta.

Num dia de sol resolvi lavar meu carro e ele pediu para eu lavar o dele também. Quando eu vi, ele trouxe os 3 carros dele. Nessa tarefa eu tive uma queimadura de 3º grau no braço por conta de produto químico utilizado. Fiquei 15 dias com o braço queimando, e ele levou 7 dias para olhar meu braço. E isso só aconteceu pois um amigo, ao me ver, chamou a atenção dele. Nunca recebi sequer um Paracetamol nesse tempo.

Outro dia, na intenção de cortar árvores para um campo de futebol, me cortei em maricas e passei 10 dias com feridas nos braços e pernas e novamente não recebi nenhum Paracetamol. Num dia de chuva, fui buscar o cavalo no campo e, para não cair com o animal, bati minha canela num ferro e cortei rente ao osso, e mesmo com o osso aparente, não recebi sequer um band-aid.

Aos poucos meu corpo começou a cansar e meu apetite foi ficando cada vez menor. Meu sorriso foi ficando amarelo e eu já não brilhava tanto nos finais de semana pois eu estava muito cansada. Comecei a achar que algo estava errado. Me dei conta que eu estava há 4 meses morando com um homem e dormindo num sofá. Sim, eu nunca dormi na cama dele, ou no quarto dele! Ele estava traumatizado do último relacionamento, mas tudo ia melhorar – dizia ele. Ele tinha sono leve e eu roncava, dizia ele. E assim, para tudo, existia uma desculpa. Uma promessa de que tudo iria melhorar se eu fizesse algo, se eu mudasse, ou quando tal coisa acontecesse.

Tudo que no início eu fazia maravilhosamente bem e era elogiada, começou a receber críticas e mais críticas. Ele começou a reclamar da marca do leite que eu comprava, da marca do iogurte, da marca da granola, do tempero do feijão, da limpeza dos pratos.

Certa noite, após uma janta com amigos, quando ficamos sozinhos ele sentou no canto do sofá, e disse que queria estar com outra pessoa naquele momento. Foi um soco na minha cara! Naquela semana ele começou a ficar duas noites fora e eu confiava no que ele dizia, e sequer ligava ou mandava mensagem perguntando onde ele andava. Eu ficava no sitio, sozinha, faxinando, pintando, organizando, cuidando dos animais… pintei todo o quarto dele, arrumei todas as roupas dele, os armários e as gavetas. E fiz isso em quase todos os cômodos da casa.

Para todos, éramos um casal. Para todos, morávamos juntos. Para todos, éramos felizes e perfeitos. Até que numa quarta-feira à noite ele veio me comunicar que na sexta-feira ele iria trazer uma ex-namorada para passar o final de semana no sítio e que seria lindo ver nós três juntos. Que nada mudaria entre nós e que isso até nos aproximaria. Meu corpo tremeu! Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo! E descobri que ele se encontrava com a ex-namorada cada vez que ia para Porto Alegre, enquanto eu ficava no sítio. Para ele não houve traição, não houve mentiras, pois não tínhamos nenhuma relação e eu nunca perguntei onde ele ia quando ficava fora. Simples assim!

Em 1 hora juntei os 5 meses de um lar que eu criei por amor, afeto, carinho, empatia e voltei para minha casa. Foram os 30km mais longos da minha vida. E dois dias após minha saída do sítio, ele levou a namorada (sim, com título – aquele título que ele tinha trauma de colocar na nossa relação!), para a festa junina que eu havia organizado! Passei vários dias sem conseguir dormir, sem conseguir sorrir, sem conseguir sair na rua, sem ter vontade de tomar banho.

Li tudo sobre narcisistas e a dependência emocional na qual as vítimas se ligam a eles, e sei que não estou livre, curada ou resolvida. Ainda tenho dor, saudade, vontade de estar junto, incertezas, pensamentos doentios, dúvidas se eu estava certa, dúvidas se não fui eu quem fez isso acontecer. E culpa. Olhando para trás, acho vários sinais que eu deveria ter me dado conta. Olhando para trás também vejo todo o ciclo narcisista: a escolha, a conquista, a rejeição e o descarte. Vejo os sinais que recebi e na época não entendia o que era e pensava: “é o jeito dele”. Ele não gostava de escutar estórias longas, e nem curtas, e dizia: “esquece, nada disso está acontecendo”. Na verdade não tinha interesse por nada que não fosse sobre ele. Quando eu sentia alguma dor ele dizia que se eu dormisse passava e no outro dia nem falava mais no assunto, mas quando ele pegava um resfriado, passava na cama 7 dias. Não havia nenhuma empatia pela dor do outro.

E assim, de migalhas, vivi 5 meses sob o mesmo teto de um homem com cara de bom moço, fama de bom moço, palavras de bom moço mas a mente perversa de um psicopata cruel e sem limites, que atinge teu físico, teu emocional e teu financeiro sem piedade ou remorso. Por sorte e amor, os amigos que eu abandonei pelo caminho, estavam ali, a postos e me receberam, me acolheram, me deram colo e comida, me ouviram e não me julgaram, e isso não tem preço.

Não sei quando vai parar de doer. É um dia de cada vez. É um dia de paz e um dia de desespero. Tem muito tempo pela frente. Ainda terão muitas lembranças que irão doer. Mas se eu posso deixar um conselho e uma dica, é: escute tua intuição! Se algo parece estranho, errado ou incomum, é porque existe algo, e mantenha uma boa, forte, justa e amorosa rede de apoio para ajudar a juntar teus caquinhos quando tu conseguir sair dessa roda doente da relação tóxica.

Por RcZ

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