O jogo de dados de Deus

Um conto sobre futebol, sorte e azar na zona sul de Porto Alegre.

…Parece que foi ontem. Estávamos os guris, como minha mulher chamava a turma do futebol, na roda de cerveja do Bar do Alemão. Ninguém na roda era mais criança, mas ali seriamos sempre Os Guris. Entre risadas e discussões acaloradas sobre o resultado do nosso jogo. Disputávamos uma pelada e depois enchíamos os canecos. Eram naqueles instantes que abaixávamos a guarda da luta diária e conversávamos sobre a complexidade da vida, a loucura da vida. Ali, entre goles de cerveja, nos queixando do cotidiano e falando besteira, gozando um da cara do outro, contando piadas ou discutindo política e futebol e mulher, pairava uma leveza singela e fazia aquele momento vulgar ganhar força e sentido. E muito dos destinos eram casualmente traçados ali, muito da força e da imagem que cada um fazia de si mesmo junto de todos os outros, resultava no caminho seguido no dia seguinte, ou numa lesão, no joelho, ou num pé quebrado, duma entrada um pouco mais dura durante o jogo.

Nossas diferenças nos mostravam, comparadas as vidas uns dos outros, quem éramos, ou ainda quem parecíamos ser. Era um festival de vaidades e desculpas por sermos o que éramos, ou o que achávamos ser, que brindávamos nossa saúde e dávamos repercussão ao jogo da noite.

Nessa noite em especial, comecei a refletir sobre o sentido da vida, e do rumo que as coisas tomaram, às vezes fugindo do controle, como quando o controle está na mão da patroa na hora da novela, e queremos muito saber do resultado da rodada do Campeonato Gaúcho em outro canal… Aconteceu que fugindo as expectativas, o time favorito do nosso torneio das quartas-feiras havia perdido. Pensava eu ali naquela mesa, sobre o resultado do jogo, assim como as resultantes da própria vida e de como aquilo tudo chegou aonde chegou. 

Havíamos perdido o jogo da final do nosso campeonato das quartas-feiras, que pra nós era muito! Estávamos reunidos em volta daquela baita mesa improvisada, acompanhando as flautas dos nossos camaradas vencedores. Em meio aquele burburinho de risada e cerveja. Mas o jogo era assim mesmo, alguém ganhava e alguém perdia. E precisávamos entender aquilo. Decifrar o porquê de aquilo ter acontecido com o time que, afinal, era o time favorito. Começou que o nosso grande jogador, o nosso craque, não jogou o suficiente para nos trazer a vitória. Atrás daquela cara fechada, atrás daquele bigode gaudério, daquela cara que parecia ter sido talhada a facão, daqueles olhos de índio véio que sempre traduziam tão bem a partida de futebol, daquele chute mágico que explodia como um canhão em direção ao gol do adversário. Hoje apenas um nebuloso episódio silenciava por traz dos seus olhos. Ofuscando todo o time, dando a vitória aos nossos oponentes, que, afinal, estavam com um time bem mais fraco que o nosso.

Pois é Waldo, não foi bom o jogo hoje. Achei você desatento e displicente. – E o pessoal fazia coro “É, foi displicente!… Muito displicente.” O Lauro, do outro time, interrompeu e disse que o Waldo havia jogado muito bem, obrigado, e deveria continuar assim. – E todos caíram na gargalhada. 

O futebol imitava a vida, e como deuses do Olimpo, lutávamos por vitória, por poder e glória, numa hierarquia gerada pela estrela da habilidade, do drible, da ginga e do gol… E da sorte.

O Waldo era um craque, sorte do time que ele jogava! E ele havia jogado no meu time essa noite. Apesar de não termos muita intimidade, além do futebol, ele era um cara legal, tava na cara. E jogava muita bola! Gostava do jogo, e corria muito, e fazia jogadas inspiradas e às vezes parecia até sorrir um pouco por baixo daquele bigodão fora de moda. Falava muito pouco, sobre si ou sobre qualquer coisa, mas comandava muitas jogadas apenas com o olhar. Dava ordens por telepatia dentro do campo, falando menos que o essencial, se limitava a se concentrar no jogo e fazer do campo e da grande área um tabuleiro de xadrez onde fazia da estratégia, aliada à força, o objetivo máximo da sua vida. Era lá que ganhava a admiração que todo mestre merece. Pois quando inspirado, costurando o campo, dominando, dando passes precisos com o seu gingado viril de guerreiro apressado, nos dava a alegria do gol, e melhor ainda, o júbilo glorioso da vitória. O Waldo era um artista do futebol, uma estrela que não havia se profissionalizado e nos dava grandes alegrias ao jogarmos com ele. Era o futebol tosco com o futebol arte!  E não era raro, quando eu voltava para casa, depois de toda a comemoração por termos ganhado o jogo (claro que o Waldo estava jogando no meu time). Eu chegava fazendo barulho e gritando que tínhamos ganhado! Tínhamos ganhado o jogo! Minha mulher já estava na cama e resmungava, pedia para fazer silêncio, me chamava de maluco, que queria dormir, e dizia que no outro dia, sim, tínhamos que acordar cedo para “ganhar” a vida…

Mas aquela noite deu tudo errado, e acabamos perdendo o nosso campeonato das quartas-feiras, apesar de estarmos com o time favorito, com o nosso craque de maestro, deu tudo errado! E claro que o Maurão estava cheio de onda porque o time dele é que tinha ganhado, bebia e gargalhava feito um porco, mas que afinal, era o grande campeão.

Depois daquela ladainha corriqueira e de toda análise futebolística, de todas as piadas maldosas, alterações de ânimo, xingamentos e risadas. Finalmente o pessoal foi deixando as mesas empilhadas, uma ao lado da outra, que os times, agora misturados, ocupavam, se levantando e indo embora. Espalmando a mão uma na outra e terminando num soco de punho fechado contra o soco do outro, todos iam se despedindo.

Afinal ficaram uns poucos vadiando e debatendo sobre o sentido daquela derrota. Alguns se perguntavam se aquilo não era o prenúncio de um tempo de decadência, ao menos para o time do Waldo? O time que perdeu. Seria algum augúrio dos novos tempos? – Provocativas sarcásticas que chegavam a nós como chicotes humilhantes. O Waldo continuava calado, gemendo atrás do seu bigode, agora sujo de chope. Já era passado das onze horas quando percebi que o Fernando pediu a saideira, se aproximou de mim e do Waldo, que parecia letárgico, serviu nossos copos e se aprumou na cadeira. Olhou nos olhos de cada um enigmático. Puxou um copo de couro com um jogo de dados, sei lá de onde, sacudiu diversas vezes, cheio de estilo, fazendo careta como que se concentrasse muito para fazer a melhor jogada, piscando um olho e abrindo o outro, enviesando a boca como num espasmo, jogando-os sobre a mesa. Os dados rodopiaram intensamente pela mesa e pararam em seguida. Olhamos atentos para o resultado seguindo a direção do nariz do Fernando que gritou dando um soco no ar: Quase fiz General! – Havia cinco dados hexaédricos que haviam caído quatro com o seis para cima e um dado com o um. – Quase! Mas fiz pôquer de seis, vejam: quatro dados com o seis! Hehehe… Boa jogada! Hehehe...

O Fernando era considerado um dos piores jogadores no futebol da turma, era a antítese do Waldo. Gostava mesmo era de jogar conversa fora, como os seus passes e chutes a gol. Alguém sempre se irritava com ele durante o jogo, principalmente quando a bola passava na sua frente enquanto ele discursava sobre alguma coisa com um dos jogadores que tentavam não prestar atenção enquanto o jogo corria. E quando passavam a bola para ele, raramente fazia alguma coisa proveitosa para o seu time, além de dar um bico na bola para bem longe. Se alguém falava em religião, ele rapidamente entrava no assunto, dizendo ser sedentário. Era essa a sua religião. O pessoal comentava que ele só participava dos torneios porque o seu médico insistia para ele fazer exercícios físicos e sair um pouco da frente do computador… Foi unindo o útil ao agradável que o Fernando começou, um tempo atrás, a organizar o torneio dos Guris, do futebolzinho das quartas, que jogávamos num centro de esportes perto de sua casa, na zona sul. Fernando trabalhava na tevê, ele era editor de um programa, era um grande status ser o cara que trabalha na tevê.  Mas na verdade todos o achavam muito esquisito, além de não jogar porcaria nenhuma. Era um reserva nato, que ajudava a completar o time dos Guris. Tinha sorte quando caia no time do Waldo, mas desequilibrava para pior quando caia no time adversário, que, casualmente, seria o time perdedor também. Era o oposto do Waldo, que parecia um guerreiro em campo, mas sempre na dele, ao contrário, o Fernando era desajeitado, inofensivo, e até um perigo para o seu time. Porém, apesar de também não ter muita intimidade com ele, sempre o achei uma figura engraçada (fora de campo). Tinha opinião sobre tudo, e gostava de debates. Podia ser sobre família, trabalho ou religião, que ele tinha uma opinião nada convencional para alfinetar nossa fauna diversificada. Um sátiro – Dizia o Telminho, um dos nossos jogadores mais novos, que estudava Direito e parecia se divertir muito com os comentários malucos do Fernando.

Fernando encarou o Waldo espremendo os olhos, numa careta que parecia alguém chupando limão, e disse para que ele não levasse as coisas tão a sério, pois o mundo era um campo de possibilidades infinitas e que seria muito difícil entendermos tudo se não fosse pela ótica da relatividade. Por que depois que Einstein afirmou que a Mecânica Quântica está a impor-se como um axioma concreto, os paradigmas irromperam em outras formas de interpretarmos o mundo e os nossos pequenos problemas existenciais. Olhei o Alemão, o dono do bar, que detrás da caixa registradora acenava positivamente com seu olhar grave e seu rosto vermelho, erguendo o nariz pra cima e pra baixo, enquanto Fernando falava:

– Vejam o velho Einstein. Dizia que a teoria quântica, apesar do que tudo indicava, ainda não era a teoria certa. As descobertas iniciadas com Rutherford sobre as partículas elementares e todos os experimentos posteriores, que ele próprio ajudou a fundamentar, levavam para um campo de incertezas, um universo totalmente novo do que conhecíamos até então… E sua máxima se dava quando ele dizia que a teoria quântica dizia muito, mas não nos aproximava do segredo do Old One.

Estava convencido de que Deus não jogava dados. Pois acreditava que toda casualidade possuía um fundamento a ser racionalizado. Nos entreolhamos instantaneamente e caímos na gargalhada. “Einstein, Old One, Mecânica Quântica e jogo de dados… O mesmo sátiro de sempre” – eu disse, rindo muito. Claro que eu já tinha ouvido falar de Mecânica Quântica e do velho cientista pop, mas àquela hora, fluiu como se estivéssemos num quadro fantástico de Salvador Dalí. Depois de uma breve pausa dramática, o Fernando continuou filosofando:

– A relação de Einstein com a Física é muito interessante, meus senhores. Ele foi o primeiro a perceber que a teoria quântica era revolucionária. A sua “ideia” de luz é fantástica! Ou, do que ela é composta, os chamados Fótons. Havia descoberto que essas partículas são desviadas por um campo gravitacional duas vezes maiores que as predições da mecânica Newtoniana, para uma massa viajando a velocidade da luz. Esta observação foi uma evidência que daria suporte a relatividade geral, uma teoria da gravidade publicada em 1915 por ele. A relatividade geral percebeu que os fótons sempre viajam a velocidade da luz, depois de se levar em conta a curvatura do espaço-tempo (em um espaço curvo, isto é chamado de geodésica). Fótons estão sempre em movimento em relação a todos os observadores. Fótons são produzidos por átomos quando um elétron move-se de um orbital para outro com menos ou mais energia negativa. Além disto, fótons são produzidos sempre que partículas carregadas são aceleradas. Átomos continuamente emitem fótons, devido as suas colisões mútuas. A distribuição do comprimento de onda destes fótons, portanto, está relacionada à sua temperatura. Existe também a possibilidade de um fóton possuir um determinado comprimento de onda ao ser emitido por uma coleção de átomos a uma dada temperatura. O espectro de tais fótons normalmente se encontra entre a faixa da micro-ondas e do infravermelho. Assim, Rádio, televisão, radar e outros tipos de transmissores usados para telecomunicação e monitoramento remoto, rotineiramente criam uma extensa variedade de fótons de baixa energia pela oscilação de campos elétricos em condutores. Magnétons emitem fótons usados em fornos micro-onda, e o raio laser cria fótons monocromáticos por emissão estimulada. 

Nesse instante o Waldo olhou pra mim, com cara de desesperado, tipo “esse cara tá nos sacaneando”, mostrando as palmas das mãos e erguendo as sobrancelhas. O Fernando era um Sátiro! E continuou:

– Em 1909, Einstein sugeriu numa conferência que era necessário encontrar uma forma de entender em conjunto partículas e ondas. Como se assistíssemos a uma partida de futebol, prestando atenção nos seus jogadores de forma individual, e no efeito do time inteiro, grosso modo falando. Claro, pois as partículas só existiam percebidas pelo observador, num determinado ponto de interferência do fenômeno, senão elas eram ondas – então fez toda uma encenação pra explicar-nos o fenômeno da fenda dupla, usando um pote de sorvete, prendedores e cerveja. Tocando no líquido com o dedo para formar ondas. Essas ondas atravessavam as fendas duplas feitas com prendedores e, diferentemente com o que ocorreria se a experiência fosse feita com uma metralhadora disparando rajadas de balas sobre uma fenda dupla, as ondas estavam em mais de um lugar no espaço, diferente das partículas, no caso representadas pelas balas, que atravessando as fendas, iriam parar em um local visível espacialmente. – Observando-se a fórmula, verifica-se facilmente que, à medida que a massa ou sua velocidade aumenta, diminui consideravelmente o comprimento de onda. O corpo macroscópico também tem associada uma onda, porém, a massa é tão grande que se pode afirmar que apresenta um comprimento de onda desprezível, porém não nula, ao contrário da análise microscópica do fenômeno. Por isso, na hora de falar sobre partículas é muito importante considerar a dualidade partícula/onda, já que o comprimento de onda explica muitos de seus fenômenos. No entanto, em meados dos anos de 1920, Einstein discordou da interpretação na conferência de Copenhague na Dinamarca, porque ela defendia que a realidade era aleatória ou probabilística. Enfim, Einstein concordava que a Mecânica Quântica era a melhor teoria disponível, mas procurou sempre uma explicação determinista para melhor explicá-la. Para Einstein, Deus não jogava dados, ou seja, tudo tinha um por que… Alemão, traz a saideira! 

Nesse instante o Waldo acendeu um cigarro, tossiu enquanto um dos garçons do Alemão o servia. Lembrei que o Waldo não fumava, nunca o tinha visto fumar, geralmente bebia um único copo de cerveja, enquanto todos o bajulavam e relembravam as suas façanhas e os seus golaços. O Fernando também acendeu um cigarro enquanto lhe serviam mais cerveja. “O destino do ocidente geralmente é feito entre tragos e mesas de bar.” – Tentei uma frase de efeito, depois que entráramos no ambiente das partículas subatômicas, mas ninguém comentou nada a respeito. O Fernando parecia um fauno – meio homem, meio bicho – nos enfeitiçando com teorias e personagens que nos transportavam a um universo fantástico onde o improvável se tornava visível… E o cabisbaixo craque dos guris escutava com cara de incrédulo. O tempo passava suavemente naquela estranha noite de quarta. “Jogue os dados. Experimente, vamos…“, disse Fernando, esquisito como sempre, alcançando os dados para o Waldo arremessar. E eles rodopiaram e pararam com seus respectivos resultados. Ele fitou o Fernando que se piscava todo prestando atenção numa música que suavemente nos envolvia. O Alemão chamou minha atenção para a música, era O Danúbio Azul de Strauss, ou An der schönen blauen Donau, como ele falou. Que havia, sei lá por que motivo, colocado no som do boteco. E Fernando assinalou: “2001 Uma Odisséia no Espaço! É isso que estou dizendo pra vocês, Energia! Ela permeia tudo e interfere no lado do labirinto que iremos seguir…” Fernando se levantou e foi até o balcão e agarrou o braço do dono do bar, que assistia a tudo até o momento com dissimulado interesse, e continuou falando com o Alemão sobre o seu paradigma recheado de partículas e ondas. Os dois muito compenetrados naquela investigação metafísica sobre a Antimatéria. Logo o Fernando abraçado ao Alemão dizia aos berros: “Energia é igual à massa vezes velocidade da luz ao quadrado”, enquanto o Alemão respondia: “o problema todo no entendimento científico estava na Entropia, o problema todo estava na Entropia!”.

Estávamos ali no Bar do Alemão, na zona sul de Porto Alegre, numa quarta-feira depois do futebolzinho com os guris, depois daquela estranha derrota. Depois daquela tragédia que transcorrera com o maestro do time, o Waldo, que parecia estar passando por alguma crise existencial muito fodona, pra ter jogado tão mal, já que isso sempre me pareceu que era o melhor que ele fazia na vida, e que fazia tão naturalmente, tão magistralmente… 

Tudo começou no meio de campo quando eu, que jogo na zaga, desarmei o Maurão. Que vinha feito um tufão em direção a nossa área. O Maurão era quem mais se aproximava do Waldo, porém não com a mesma maestria de finalização. Era um guerreiro no combate do futebol – forte, rápido, mordaz – mas na hora da conclusão, do objetivo, do grand finale, chutava pra fora, ou passava pro Fernando. O Fernando que contava alguma anedota pro Telminho, que por sua vez tentava se concentrar no jogo. Mas o Fernando não deixava – ou era desarmado por mim, como foi nesse instante. E eu passava pro Oscar – que sempre chamávamos de Oscar Alho – o negro grande e careca de um olho só. Tinha um olho de vidro – era interceptado pelo Lauro, do time deles, no meio campo, mas Oscar Alho, com a sua malemolência sacana conseguia driblar, passando velozmente pro Tó que correndo num contra-ataque cheio de gás, era acompanhado pelo lado direito do campo adversário, por ninguém menos que o matador, ninguém menos que o Waldo. Tó passou pelo Fabão, que entrou meio de sola, num carrinho furioso que não conteve o franzino, que partiu para a grande área cruzando pro outro lado do campo com a visão privilegiada dos melhores estrategistas, então ficou frente a frente com o monstruoso Tronco, que parecia um cão raivoso e suarento… Tronco deu aquele furioso urro seguido daquele “AAAHHHHHHHHHHHH!!!” se atirando como uma avalanche, como um maremoto, como um cometa-do-fim-do-mundo em direção ao franzino Tó, que surpreendentemente o encobriu numa jogada fantástica, antes de ser literalmente trucidado num corpo-a-corpo violento… E a bola subia como que em câmera lenta, subindo aos céus, se confundindo com a própria lua radiante, sobre os olhares ansiosos de todos os jogadores, sincronizados num movimento que formava uma pintura de combate, um mural de guerra, onde os personagens escreviam um destino, se não do universo, ao menos dos ânimos para o fim de semana. E ela seguia o seu destino cheio de luta e emoção rumo ao triunfo, plainando no ar, enquanto todos os jogadores rumavam. Uns se esforçando para tirá-la do perigo que se aproximava, enquanto outros já a empurravam na direção do gol com a força do pensamento, com o ardor de toda a energia suspensa entre os corações e mentes… Foi aí que, como por telepatia, ela fluiu em direção ao pé do mágico, do herói, do glorioso guerreiro, do matador sem dó, do mordaz Waldo. E ele dominou-a com muita técnica, com a parte de dentro do pé. Suavemente ajeitou-a com o bico da chuteira, estilizando como um mago num ritual de magia. Um espetáculo, fazendo-a rodar sobre o seu eixo, em meia lua, mirando com um olho a bola e com outro o gol, sobrancelha erguida, aquela bufada forte onde todo mundo fechava os olhos, e dizia putz!  Rangendo os dentes, como se todos estivessem cozinhando o cérebro em uma panela de pressão prestes a explodir… E o Waldo apoiando a perna esquerda no chão e puxando a direita, solta à bomba e… Opa! Pegou horrivelmente mal na bola, desviou no ar e caiu nos pés de quem? Ninguém menos que o Maurão, que disparou para o nosso campo e fez um cruzamento preciso pro Telminho. Que triangulou com classe de volta pro Maurão que dessa vez não perdoou, soltando uma bomba na gaveta, que mesmo que quisesse o goleirão Nevada não pegava. Nossos adversários correram todos para o abraço, enquanto o nosso time calado fuzilava o nosso herói com toneladas de dúvidas. E Waldo ali na mais profunda apatia, que claro, acreditávamos que iria passar.

Corremos para o meio do campo e iniciamos rápido o jogo. Um pequeno, mas animado público, composto de alguns reservas, e de algumas namoradas e garotas  curtiam a bagunça da competição…  Recomeçamos o jogo. Oscar Alho passando para mim que cruzei de imediato para o Tó que serviu de bandeja nos pés do Waldo, que ficou de frente para o goleiro e pisou na bola e foi ao chão… Nesse instante Oscar Alho teve um chilique e começou a praguejar… Enquanto o Waldo se levantava com o olhar para o chão. E bucha, outro gol deles. E assim se seguiu uma saraivada de gols, uma surra, um laço, que tentamos segurar, mas atônitos com o desempenho de quem para nós sempre fora o melhor, sucumbíamos no abismo purgante da derrota… 

Sempre me intimidei um pouco para tratar com o Waldo. Primeiro porque para mim ele era um mito, era mais velho do que eu e tinha um semblante que sempre me lembrava o Laçador, aquele monumento ao gaúcho, em bronze, com o queixo apontando para o horizonte, plantado perto do Aeroporto Salgado Filho. E como ele não era de falar muito, e sim de fazer gols, aliás, até então eu não sabia nada da vida pessoal do Waldo. Ele era como aqueles artistas que veneramos no cinema e na tevê, representam personagens que nos inspiram e enchem nossas cabeças de fantasias, mas sabemos muito pouco das suas vidas pessoais, aquelas celebridades que preferem não expor a sua vida para se preservarem. Ele entrava em campo e se alongava e se aquecia em silêncio, escutava o que treinador tinha para dizer sobre a estratégia que seria adotada pelo grupo no combate, e avançava pro lado do campo adversário, com o seu semblante felino de guerreiro, sempre ereto, sempre avançando. Geralmente, depois do jogo, ele não se demorava mais do que uns vinte minutos, pagava uma cerveja, tomava um copo e desaparecia em meio aos comentários, piadas e xingamentos em geral daqueles bárbaros que minha mulher chamava de Os Guris.

Agora ele estava ali, inteirinho na minha frente, com o mesmo olhar cúmplice de sempre, porém, com a alma desnuda, parecendo um garotinho assustado depois de fazer arte, bem mais relaxado atrás do seu bigode, sempre tão viril, agora sujo de cerveja. Parecia que ele queria se abrir, contar algo, mas continuava ali naquele cenário absurdo entre eu, já um pouco tonto, um sátiro e um alemão vermelho. Enquanto os funcionários do bar varriam e preparavam para encerrar o expediente, o Alemão juntou-se a nós na mesa. Continuando o debate metafísico com o Fernando, o Sátiro, sobre a Antimatéria, o grande Colisor de Hádrons, Fractais, a Teoria do Caos, a situação de Inter e Grêmio no campeonato brasileiro, entre garrafas de cerveja e valsas tão lindas quanto profundamente fora de moda.

Quando ele voltou daquele transe etílico e abriu os olhos, eu servia o seu copo com mais cerveja, e o encarando sério perguntei se estava tudo bem? Para minha surpresa o Waldo contou o seu drama. Nós naquele fim de noite, naquele boteco, garçons varrendo, enquanto lá fora, o trânsito calmo sobre a rua de paralelepípedos e o abacateiro majestoso detrás das cercas dos condomínios de blocos. O tímido comércio fechado àquela hora, a garagem de ônibus ao lado do bar, alguns cachorros e notívagos, um motoboy entregando remédios para algum cliente de alguma farmácia, um mendigo deitado num canto de um muro rodeado de bugigangas. Nem mais tão longe demais das capitais.

Por Rodrigo Schaeffer

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